sábado, 6 de agosto de 2011

Um rio, uma floresta e um porvir




Em um ponto qualquer do Brasil, há 107 anos...
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Yani tinha apenas 9 anos de idade, mas já sabia distinguir as coisas que aconteciam ao seu redor. Até mesmo coisas misteriosas, com as quais ainda não mantinha nenhuma familiaridade.
Foi por isso que ele estranhou a presença, a cerca de 50 metros de distância, de uma figura parecida com ele. O indivíduo visto e ele só não eram totalmente iguais porque a cor da pele e as vestes eram diferentes.
Yani tinha a pela vermelha e o corpo coberto apenas na cintura, ao passo que a estranha figura aparecia coberto com algo difícil de distinguir, embora a face, única parte à vista, era totalmente branca. Eram coisas desconhecidas que impediam o indiozinho de ver melhor a pele do visitante do pescoço para baixo. Sobre a cabeça também havia um inusitado objeto que escondia os longos cabelos prateados.
E Yani pôde, ainda, verificar outro detalhe: ele andava com um arco e algumas flechas acondicionadas em um embornal, dependurado nas costas. A outra figura trazia um objeto comprido, longilíneo, em que se podia ver partes de madeira e de metal. Também notou que os pés e parte da perna eram protegidos por uma coisa um tanto quanto reluzente. O estranho estava parado, olhando fixamente o horizonte por todos os lados, como se estivesse à procura de algo.
Este encontro não podia se realizar agora porque nunca acontecera antes. Pensando nisso, Yani , calma, silenciosa e furtivamente se deslocou para mais longe e tomou o rumo da aldeia onde morava com seus pais e os demais membros de sua tribo.
Quando chegou, falou sem parar ao pai sobre a inesperada visão. A tagarelice do menino chamou a atenção de outros índios que estavam por perto, os quais se juntaram na tenda de Yema para ouvir, incrédulos e surpresos, a história contada pelo pequeno índio. Yema, o pai, e Yara, a mãe, não se mostraram convencidos num primeiro instante, mas a insistência com que o menino repetia as mesmas palavras começaram a se tornar uma possibilidade.
Eles queriam que o filho definisse melhor o que supostamente poderia ter visto. Porém, o dialeto da tribo talvez não contivesse palavras que pudessem exprimir a figura encontrada, a não ser no aspecto físico. Mas, e aquelas coisas adicionais que o estranho trazia sobre a cabeça e em todo o corpo, e outra que carregava nas mãos, como dar idéia do que seriam? Além do mais, Yani temia passar por mentiroso, tentando induzir os outros a acreditarem no que falava.
Yema pensou bem e anunciou que daria uma volta pelas redondezas, na direção indicada pelo filho. Antes, determinou que de início ninguém o acompanhasse, porque não queria provocar muita movimentação e barulho na floresta. Também pediu que se mantivesse o maior silêncio possível na tribo, de forma a não chamar a atenção caso houvesse alguém por perto.
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Yema se surpreendeu quando chegou a um ponto mais afastado e pôde constatar que seu filho não havia inventado uma história. Porém, agora não havia só uma figura estranha, mas muitas outras. Todas estavam cobertas de forma semelhante, mas era possível ver o rosto branco e muitos pelos no queixo e abaixo do nariz, além de vastas cabeleiras branqueadas.
O índio, já velho, sábio, mas ainda muito experiente, ficou atônito. Nunca vira algo parecido. Como era possível existir seres semelhantes a ele, com aquelas coisas sobre o corpo e a pele diferente da sua? De onde vieram, o que queriam? Ele ficou por minutos se perguntando até que um dos homens do grupo de visitantes falou mais alto e fez sinais para que os demais o seguissem.
Yema se escondeu melhor entre as árvores e plantas, de modo a garantir que não fosse visto. Corajoso, ficou quieto e atento enquanto via o bando de estranhos visitantes passar bem perto de onde estava, sem notá-lo, porém. Foi quando pôde observar melhor as coisas mencionadas por Yani, como as vestes, o objeto sobre a cabeça, a cobertura dos pés e canelas e aquela coisa metade madeira e metade metal.
Percebeu, também, que muitos dos passantes traziam um outro objeto, com o qual e a golpes certeiros iam cortando partes da vegetação e abrindo caminho. Ficou indignado e perplexo com o ataque às plantas da floresta que caíam pelo chão, deixando um espaço onde só restavam galhos e folhas já pisoteados e mortos.
Yema resolveu segui-los. Felizmente não tomaram o rumo que os levaria à aldeia. Ao contrário, foram parar às margens de um rio que, embora não fosse muito largo, lhes serviu de obstáculo. Yema imaginou que, se quisessem continuar, teriam de atravessar a água. E pensou se seria possível que aqueles visitantes soubessem viver dentro da água e se movimentar através dela, como os índios aprendem a fazer desde que nascem.
Para sua surpresa, os estranhos seres não manifestaram o desejo de seguir em frente e, de outra forma, começaram a tirar aquelas vestes mesmo enquanto se jogavam na água. Foi quando, estarrecido, Yema pôde notar que o corpo dos visitantes era exatamente igual ao seu e de seus irmãos da aldeia e que só destoavam na cor da pele. A dos membros do bando era branca como algumas pétalas de rosas. A dele era vermelha, bem bronzeada. Ele até se olhou melhor para garantir que estava mesmo notando uma diferença entre as cores.
Ficou longe, imóvel, sob uma árvore, observando a algazarra que os seres faziam no rio, uns jogando água nos outros e alguns movimentando os braços e se locomovendo para cá e para lá, gritando sem parar. Percebeu que os visitantes de pele clara não tinham pressa, pois ficara por ali muito tempo sem notar qualquer movimento que significasse que eles sairiam da água e colocariam de novo suas vestes.
Nem todos os seres estavam no rio. Alguns haviam ficado de fora. Foi quando, assustado, Yema viu que um deles ergueu o objeto meio feito de madeira e outra metade feita de metal, colocou-o sobre os ombros e apontou-o para um determinado local da floresta. Estarrecido, notou um barulho alto que nunca tinha ouvido, além do que vira algo parecido com fumaça saindo do objeto.
Ele sabia distinguir bem a fumaça com a qual convivia diariamente na aldeia. Madeiras eram utilizadas para se tornar brasas e assar a caça. Imediatamente pensou que a substância branca que saiu do objeto do ser branco era igual àquela que saía das fogueiras que os índios faziam.
Estava pensando em tudo isso, com a imaginação totalmente à solta, interpretando as coisas que acabara de ver, quando o visitante que provocou o barulho andou uns poucos metros, embrenhou-se na floresta e, ao cabo de algum tempo, voltou com um pássaro em uma das mãos, aparentemente sem vida, pois estava inerte e nem fazia qualquer esforço para escapar e voar. Ao voltar ao ponto onde estava, Yema pôde perceber com certeza de que se tratava de um pássaro que os indígenas chamavam de anu preto, uma ave muito comum na região.
Ainda mais atônito, ficou a pensar se aquele objeto longilíneo poderia ter sido a causa da perda da vida do anu, pois tudo ocorrera depois de um estampido seguido de uma fumaça. Percebeu, depois, que outros seres também usaram o objeto meio madeira e meio metal para fazer com que novas aves, igualmente inertes, fossem juntadas e queimadas, servindo de alimento para os estranhos visitantes. Ficou imaginando se aquela coisa comprida era mesmo capaz de, a distância, provocar a morte de pássaros e quem sabe animais. Seus pensamentos quase se misturaram em sua cabeça, dificultando bastante a sua capacidade de raciocinar.
Notando que algo de estranho poderia estar ocorrendo e depois de ver que com outro objeto os brancos eram capazes de destruir rapidamente parte da floresta, Yema chegou à conclusão de que era hora de voltar à aldeia e convocar outros irmãos seus para, em grupo, se aproximarem dos visitantes e ver o que eles estavam pretendendo fazer.
Yema conseguiu reunir outros 12 índios, quantidade um pouco superior à dos brancos, que ele vira em número de pelo menos 7, na beira do rio. Quando chegaram, com seus irmãos também impressionados com a existência de seres parecidos com os índios, perceberam que os brancos já estavam todos com suas vestes, além da proteção para a cabeça e para os pés.
Em fila, os brancos tomaram o rumo além do rio e, ainda cortando violentamente as plantas, seguiram em diante. Yema e seus irmãos os acompanhavam próximos, porém não tão perto a ponto de permitir que qualquer barulho pudesse chamar a atenção daquelas estranhas figuras.
Em dado momento, porque os índios precisaram se adiantar um pouco, Yema e seus irmãos ficaram face a face com um dos brancos. Este, imediatamente chamou os companheiros que se colocaram bem ao seu lado, apontando para os homens de pele vermelha aqueles objetos meio madeira e meio metal.
Foram intermináveis instantes de silêncio e de tensão, até que estampidos começavam a pipocar em direção aos índios, alguns dos quais tiveram tempo para pegar suas flechas e dispará-las em direção aos brancos. Outros infindáveis momentos depois, em meio à fumaça e sangue derramado, apenas um ser conseguiu ficar de pé e ver estarrecido 18 corpos esticados e mortos pelo chão. O ser que sobrou da carnificina olhou para o alto, enxugou a testa suada, acomodou o objeto meio madeira meio metal no ombro, rezou um pouco pelos seus amigos e tomou novo rumo na floresta.
O rio em que se banharam no meio da floresta anos depois seria chamado de Baguaçu pelos moradores do local. O lugar onde ocorreu a carnificina também alguns anos depois seria denominado de Praça Rui Barbosa. Ambos, rio e praça testemunharam um pequeno episódio entre os muitos que provocaram o nascimento da uma cidade, local onde abundava uma árvore que os índios chamavam de Araçá.