sexta-feira, 28 de maio de 2010

A arte de (bem) escrever

Escrever é uma arte, assim como o é, também, cantar, declamar, pintar, atuar no teatro e no cinema ou praticar tantas outras formas de manifestações culturais. Porém, chama a atenção um lado talvez pouco observado dos jornalistas e articulistas brasileiros, muitos deles capazes de elaborar excelentes textos repletos de elegância e criatividade. Foi o que notei lendo alguns artigos na imprensa e observando a performance de alguns de seus brilhantes autores, muitos deles fazendo uso de frases já conhecidas para dar um melhor significado às suas próprias matérias.

Marcelo Câmara, por exemplo, ao discorrer em um dos cadernos do Estadão sobre a cachaça brasileira, por ocasião da comemoração da 100ª edição do caderno de culinária do jornal que na semana seguinte chegaria a este número, assim intitulou o artigo: “A centésima é por nossa conta.” Por sua vez, Dias Lopes, outro excelente colaborador do jornal, ao escrever sobre o rei Dom João II, que governou Portugal entre 1481 e 1495, e seus sempre monumentais banquetes oferecidos a seu séquito e demais cordões de puxa-sacos, referiu-se a ele, no título da matéria, como “Dom João II, um rei festeiro”.

Lucas Frasão, que costuma escrever artigos para publicações na área de turismo, ao fazer sua matéria sobre as maravilhosas corredeiras que se estendem por seis mil metros no rio Jacaré-Pepira, em Brotas, a 246 km de São Paulo, assim se manifestou: “Corredeira pra cachorro”. É que o local abriga um antigo costume, por meio do qual os praticantes que vão desafiar as corredeiras do rio com seus barcos sempre levam consigo um cachorro, não por acaso “o melhor amigo do homem”. E como bem lembrou o autor, é curioso como os animais, acostumados à vida agitada nas cidades, aproveitam as partes de águas mansas do rio para se desestressarem e recarregarem suas baterias.


Os exemplos de criatividade não param aí: Carla Miranda, articulista de turismo, tendo a Grécia como tema de uma de suas matérias, assim a intitulou: “Comece por Atenas sua epopeia particular pelo país dos deuses”. É bem verdade que ela escreveu seu artigo com toda esta tranquilidade em junho de 2008, muito antes da atual crise daquela nação, que está deixando a Europa e o resto do mundo de cabelo em pé e com a pulga atrás da orelha.

Você também por certo conhece a expressão “ir direto ao ponto”. Significa ir de pronto ao âmago de uma questão, ou seja, resolvê-la de imediato, sem tergiversar e nem desviar do assunto. Porém, Rita Loiola, usou a mesma expressão para referir-se às carnes mais nobres dos bovinos, emendando, ainda, a citação “crocantes por fora e tenras por dentro”. Já Michelle Alves de Lima contrariou o costume das pessoas de oferecem tradicionalmente aos visitantes alguma bebida alcoólica para brindar por qualquer coisa. E trocou esta possibilidade pelo simples convite “aceita uma água?”, ao abordar as muitas qualidades das águas minerais encontradas no Brasil. Daí decorre, ainda, que aquela famosa frase “mudou da água para o vinho”, que ela habilmente utilizou de forma invertida para um dos subtítulos de sua matéria, também teve razão de ser, pois ali mesmo ela abordou o caso de uma pessoa que, por razões médicas, havia sido proibida de ingerir vinho, sendo aconselhada a tomar água em seu lugar. E mais: em outro ponto de seu belo artigo sobre o tema enumerou alguns tipos de “águas que vão muito além da sede”. Bonito, não?

Um articulista anônimo da grande imprensa, usando a velha máxima popular “tem gente que só fala abobrinha”, referindo-se evidentemente àqueles que falam demais, ao escrever sobre este produto para uma coluna de culinária, retrucou: “Não é só abobrinha”. Mudando da água para o vinho, ou seja, da culinária para a informática, que tal saber o que Gustavo Miller escreveu sobre a prática que as pessoas têm de ouvir música com fones de ouvido? - “Fone de ouvido: aprecie com moderação”, certamente lançando mão de uma frase comum nos anúncios de bebidas alcoólicas e referindo-se aos males que este recurso causa aos tímpanos das pessoas se estas o usarem com constância.

Outro jornalista, ao falar das delícias da culinária da Itália, em sua região próxima à Suíça, preferiu dar o seguinte título à sua matéria: “Gulodices do norte da bota”. Bota é um termo muito utilizado para representar a Itália, pois os contornos geográficos do país fazem um desenho perfeito deste vestuário dos pés. Já o jornalista Jacques Trefois, ao escrever um artigo sob encomenda para um grande jornal falando sobre a vida de um exímio e famoso conhecedor de chocolate, assim intitulou a sua matéria: “Pierre Hermé: artista, chocólatra”, criando, assim, um neologismo, ou seja, uma nova palavra para o nosso já rico vocabulário.

Mas uma das maiores sacadas em artigos sobre os temas aqui abordados certamente partiu da articulista Carla Conte. Ao tratar da abundância no território brasileiro dos muitos tipos da banana, não teve dúvidas e deu o seguinte título à sua matéria: “República das bananas”. A expressão, como todos sabem, é uma referência altamente pejorativa para alguns países, principalmente os latino-americanos, conhecidos por serem politicamente instáveis, submissos às nações mais ricas e frequentemente dominados por governos corruptos e opressores. A propósito, a expressão foi cunhada pelo cronista norte-americano William Sydney Porter, que utilizava o pseudônimo O. Henry. A referência inicialmente se destinava a Honduras e foi apresentada pela primeira vez no livro de contos curtos Cabbages and Kings, de 1904, ambientados justamente na América Central.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Mestre da Vida


As loucuras e desvirtuamentos completos do mundo atual, podem, de certa forma, serem comparados ao que se passa em um interessante filme produzido em 2006, dirigido pelo cineasta George Gallo. Nele, o veterano ator Armin Mueller Stahl interpreta o pintor russo Nicoli Seroff, já aposentado e extremamente desiludido com os rumos que a arte da pintura tomou em nosso tempo. O ator coadjuvante Trevor Morgan faz, por sua vez, o papel do jovem John Talia Jr., que deseja de toda maneira dedicar a sua vida àquela arte.

O melhor do filme, cujo título em português é “O Mestre da Vida” (Local Color), parece não ser exatamente a química criada e estabelecida entre um homem idoso, cansado e que vive isolado e um adolescente em pleno vigor de sua juventude, ansioso por aprender a pintar com um expert no assunto. Ao contrário, o que se evidencia é o mundo tresloucado atual, em que qualquer coisa feita com qualquer objeto é imediatamente aceita como sendo “arte de vanguarda”, um “insight criativo” ou uma “descoberta incrivelmente inovadora”.

Relutando por anos a retornar ao métier, por julgá-lo desfigurado e sem sentido, Seroff – depois de receber um novo sopro de entusiasmo por conta da companhia do jovem aprendiz que não só o acompanha como também mora na casa do velho pintor por um bom tempo - resolve aceitar um convite para fazer parte de um júri em um festival de pinturas da pequena cidade onde mora. Ao entrar no ambiente onde as “obras” estão expostas e ver as primeiras duas que encontrou pela frente quase dá meia volta e vai embora, balançando negativamente a cabeça diante daquilo que considerou uma verdadeira atrocidade a que muitos chamam de arte.

No primeiro caso, ele se depara com duas rodas dentadas. Indaga ao autor do “trabalho” sobre o significado daquilo e ouve como resposta que se trata de “uma visão filosófica do movimento”, demonstrando que colocadas em rotação as rodas “se movimentariam mutuamente”. No segundo caso, aproximou-se de um sujeito que apreciava com deslumbramento total um quadro que ele próprio pintara, com toda a extensão da tela pintada em preto, sem nenhum outro traço. Resolveu perguntar ao deslumbrado artista o que significava aquela “pintura” toda em preto, ouvindo a explicação de que se tratava da “bidimensionalidade do tempo”.

Arrependido por ter aceitado o convite, comentou que, diante do que vira, não levaria muito tempo para um sujeito encher um balde de urina e exibi-lo no Metropolitan de Nova York, sendo tal ideia apontada por quem a criou como arte pura e por quem a visse como algo extremamente criativo. Aí não teve dúvidas, abandonou o lugar imediatamente, imaginando que não sobreviveria aos próximos exemplos se ali permanecesse.

Em outra cena marcante e hilária, exibe para o grande amigo e expert em pintura, Curtis Sunday, vivenciado pelo ator Ron Perlman, uma série de desenhos que mostravam pinceladas aleatórias, aparentemente sem nenhum nexo ou sentido. A cada desenho, diante de um Curtis enlevado, embevecido e maravilhado pela espetacular sequência de quadros que via à sua frente, ouvia as mais estapafúrdias explicações sobre o que os artistas que os pintaram queriam dizer. Um transmitia “amargura e tensão”, o outro trazia um “que” de paixão e êxtase, um terceiro certamente significaria o advento de uma nova mentalidade mundial, etc., e assim por diante, até o último dos pequenos quadros.

Seroff o interrompeu e disse que, na verdade, todos aqueles desenhos haviam sido feitos por um grupo de crianças excepcionais, a quem ensinava pintura como forma de solidariedade e terapia. Não que as pinturas dos meninos não tivesse razão alguma, mas estavam longe de guardar todos aqueles significados demorada e detalhadamente analisados pelo amigo expert em arte. Seroff, a própria esposa de Curtis e o jovem aprendiz John Thalia tiveram um ataque de riso tão duradouro e intenso que por pouco não perderam o fôlego e morreram. Este, talvez, seja o melhor momento do filme.

Mas não só a pintura encerra tais episódios. Todas os gêneros de arte, de uma maneira geral, estão enfrentando situações que estranhamente insistem em “evoluir” para um empobrecimento quase que total, chegando em alguns casos, a provocar vexames. Outro dia li em jornal da capital um artigo sobre as “criações” de um artista “multimídia”. O trabalho do cara pálida mostrava cadeiras feitas com galhos rústicos de árvore, sendo que a parte destinada ao assento era visivelmente bem desconfortável. Mas nem por isso deixou de ser saudado pelo articulista “crítico” como sendo “uma incrível e maravilhosa tendência da arte moderna voltada para a elocubração e compreensão de possíveis caminhos para o bem-estar e o mundo interior de cada um, blá, blá, blá...”. Fiquei imaginando como os possíveis compradores daquelas cadeiras iriam se sentar nelas, com aqueles espetos de pau que estavam no assento todos voltados para cima e demonstrando serem itens “altamente penetrantes”.
É, acho que o mundo mudou mesmo e com ele também a arte se modificou. Nós, que nos acostumamos a apreciar artistas menores como Rembrandt, Renoir, Da Vinci, Monet e tantos outros desta estirpe, é que estávamos errados.